DIÁRIO DAS PROFESSORALIDADES
Este diário é um dos produtos da pesquisa intitulada "O fotográfico e a professoralidade: uma cartografia de aproximações e distanciamentos, de autoria de André Luiz de Araújo Lima, realizada durante o Mestrado Profissional de Educação e Diversidade da Universidade do Estado da Bahia-UNEB, Campus IV. Cada imagem abre uma pop-up com um trecho do diário, portanto, não comece pelo começo, volte para uma segunda leitura, coisas novas surgirão. Os vazios ora são abandonos da escrita, ora são pausas para pensar e ler coisas novas. Boa leitura!
Pearls to swine
“Vamos dar pérolas aos porcos?”
This is what came out of the mouth of a public servant
who has the duty to provide services to the population,
and at the time, director of a public school.
The biblical verse resonated within the school walls,
killing all the possibilities of what
Paulo Freire thought about education.
The forgotten courage
Among forgotten courage, weaving another way of seeing,
take something sharp from the very rigidity of the bones,
like someone sharpening an instrument in their own flesh.
Sharpening becomes thinning, slowly as hair falls,
vividly how the textures of the skin change with the heat of the seasons.
Veiled, the eye dribbles the future to be struck by a vision,
potential surface delirium, impurity in its pure state,
without judgment or hope.
Courage is now a breath that emerges from the surface,
it is cold sweat like dew that springs from the leaf,
common plan of events.
Courage to think, create folds,
live the game, live the other, change the game.
Gods and shampoos
Os deuses hoje são como shampoo, cada um tem o seu.
A frase, atribuída a Felipe Pondé, incomodou as
professoras, viajávamos de carro, elas então, tentando dar concretude marxista à metáfora, logo disseram: e os alunos que nem shampoo tem em casa? Elas ainda contam os centavos nas palavras.
You can't go wrong anymore!
Num desses notórios espaços artísticos e de formação, a Escola de
Belas Artes da Universidade Federal da Bahia (EBA/UFBA), fui
surpreendido na colação de grau com uma frase de um professor.
Estava eu junto com minha mãe e irmãs, um momento solene, a
direção da instituição sempre escolhia o salão nobre do casarão
tombado da EBA para celebrar a formatura dos novos bacharéis. Era
mês de fevereiro de 2009. Após juramentos e os protocolos
cerimoniais, me dirigi à mesa onde estão os representantes da turma,
estendi meu braço para segurar o “canudo” quando ouvi uma frase
dirigida unicamente para mim em tom confiante:
“daqui para frente, não pode errar mais”.
André Lima. "Cavalo" 2024. Técnica mista.
Desformatar
Desestruturar as traves que nos calam desde o século XVI nas imagens que evocam um naturalismo incipiente, meramente formal, desarticula a ordem do discurso que ainda tem força e forma na manipulação secular do poder. Minha trajetória passou despercebida muitas vezes por meus olhos, mas aqui estamos escrevendo por muitos outros olhos de ver. Ressignificar as cinzas desse mar de olhares que antes de ser algo estavam embalsamados em meras quimeras de um jovem sonhador.
Zero experience
Nomeio de experiência zero este relato, pois pelo termo
experiência, entendo como o reconhecimento
de uma experiência em seu ato, como um entreolhar que
promove a consciência do ato em si pelo indivíduo, ao mesmo
tempo em que este reconhecimento se torna real por ele mesmo.
Nesse sentido, é importante destacar o papel da escrita de si, ou,
usando o termo foucaultiano, etopoiética, num processo de
escrita onde o escrito reconfigura-se com o plano do presente na
condição em que Umberto Eco coloca como a de uma obra
aberta, escrita como um campo aberto de experiências.
Aquilo que é escrito não se define pelo jogo de palavras, mas em
como estas são manipuladas para provocar conflitos, tensões e
torções em si mesmas no sentido de criar novos sentidos.
Foto divulgação do álbum de Zé Ramalho em companhia de Hélio Oiticica, 1974
H.O.
Redescubro a figura de Hélio Oiticica pela terceira vez na vida, a segunda, na Escola de Belas Artes, a terceira, nas aulas de docência e diversidade do mestrado profissional na UNEB. Percebo a presença da obra do artista em minha vida, não, não a obra, a poética, a marginalidade e o heroísmo: seja herói, seja marginal. Onde cabe essa heresia na escola? Não cabe, é preciso vazar. A presença da imagem mítica, mística fotografia que reúne seres alados, druidas, as cores da mangueira na calça do Hélio, um parangolé que borra a figuração dos corpos, ele próprio agora é corpo, pintura alada, filho de Ícaro, tramas de Zé do Caixão, Zé Ramalho. Não é a compreensão da arte que me interessa, é sua misteriosa presença na vida que arromba nossa invenção da própria vida, sua conservação, duração.
Sun and Steel
Sometimes writing is an exercise
reverse of the work of putting the boat to sea,
It is necessary to put the sea in the boat, together with those who sail it.
I tried to say about the body,
but all of this is useless, that's what worried me,
trying to fit the tongue into an image of the body.
Before the tongue, the palate already pulsates,
makes a body-writing drool, feverish and intense,
that takes the words by storm,
just as the black hole swallows light.
The surface of this "I" can now dream untamed,
flow like the "slobber" of slugs, as it is free from the restraint of the limit.
Cintilante
Vejo-me novamente diante do pálido brilho que envolve a vertigem cintilante da TV, sob o silêncio, quando todas as vozes gritam, o que se pode ouvir? Afinal, o que estava diante de mim? Quanto mais adaptado e localizado diante da aura hedonista da TV, mais incapaz seria de experimentar os acontecimentos a partir da realidade material e psíquica? O que este muro de blocos brilhantes guarda em semelhança ao muro da escola?
[De]composição
Explorando uma distância reflexiva durante a meditação sobre a representação do fogo, inspirado nas ideias de Bachelard (1988), este exercício epistemológico busca compreender o imaginário associado a esse elemento nas imagens visuais que desafiam minha prática docente, ao mesmo tempo em que me afasto de qualquer construção identitária que conduza a um pensamento puramente imagético. Procuro delinear uma abordagem centrada em algumas representações artísticas, notadamente na obra da artista cubana Ana Mendieta (1948-1985), cuja silhueta em chamas serve como ponto de ignição para contemplar a forja deste professor e a prática docente em artes no âmbito da Educação Básica.
To walk
Caminhar, andar muito, mas sem evitar sujar os pés. Afinal, estamos de passagem. Entre composições e decomposições, venho me tornando professor, vacilando e deslizando por entre limiares de uma formação marcada por desfazimentos e refazimentos, pelas sobras e dobras jogadas ao tempo e em poças de lama. Lama de impurezas, aproveitemos a sujeira que querem afastar de nós e toda sua riqueza pedagógica e suas potencialidades curriculares.
O que um lamaçal tem a nos ensinar em seu devir-lama? O que um currículo lamacento e pantanoso tem a nos ensinar para transmutar a educação quando a escola se assemelha a uma prisão, com grades, punições e castigos? É preciso aprender com as brincadeiras sujas das crianças, que não guardam relação pré-existente entre o barro e a mão que o molda. Caminhar, mas a partir de dentro e por dentro das poças de lama, em puro devir, pois estamos de passagem.
Sobras de quintal. 2013
Florilégio
Resisti em escrever sobre essa aula. Não sei o porquê mas talvez descubra escrevendo. Será que tudo aquilo experienciado neste dia, nesta aula, ainda está em suspenso e não submerso? Ainda me percebo naquela aula. Pode ser isso. Mas acho inútil rememorar a aula, sinto-me impelido a criar elucubrações sobre o eco que ainda ressoa daquelas vozes e pensamentos. Isso não é um diário. É um título de um livro do Bauman que ainda não li. É a força do ritual ainda pulsando, tremendo a carne, bruxaria, antologia de desejos alquímicos, florilégio é mais belo na pronúncia da boca. Comer palavras, antropofagias desejantes.
O Mentor
Pobre, fez-se professor e, na presença de outros professores,
diz: Sou o melhor da minha turma de graduação,
I'm the only one who managed to be in graduate school
He, belittling his students, calls them stupid,
estão pagando a faculdade como mero alívio de suas
posições sociais. Ele, o mentor,
professa a sentença derradeira.
But for whom?
Sem título, impressão fotográfica sobre papel. 140x90cm. 2011
Arte para quê?
Na escola, é preciso alcançar a dimensão da boniteza, como disse Paulo Freire, do afeto desinteressado, diria que do afeto a qualquer preço, por uma vontade de beleza. A imagem que ilustra esse primeiro traço de relato me meu diário tenta decifrar uma ideia mesmo do que seja começar, como se pudéssemos olhar para aquilo que nos compõe pelo rastro que deixamos, nesse sentido imagino uma aula como o momento definido por um encontro conflituoso que deixa rastros.
To write
Writing to transcend simple decoding
of linguistic signs and the literal interpretation of writing.
Writing to soil the language of power with impurities.
Write to transform.
Write to transgress.
Write to disobey.
Write to delirium.
Writing a new language with your body,
like the slug, which leaves its ephemeral trail.
Writing to make education hell.
Writing to harm the fascist in me, in you.
Writing to mess up, to disrespect.
Write for those who have already been and for those who will arrive,
It doesn't matter who it is.
Write to relearn how to smile.
Write to mice and also to bacteria,
for quasars and lunar rays.
Write to a stone.
Write like a stone.
To write...
Sem título, da série Monólogos de uma Sombra. 2011
To walk
Caminhar, andar muito, mas sem evitar sujar os pés. Afinal, estamos de passagem. Entre composições e decomposições, venho me tornando professor, vacilando e deslizando por entre limiares de uma formação marcada por desfazimentos e refazimentos, pelas sobras e dobras jogadas ao tempo e em poças de lama. Lama de impurezas, aproveitemos a sujeira que querem afastar de nós e toda sua riqueza pedagógica e suas potencialidades curriculares.
O que um lamaçal tem a nos ensinar em seu devir-lama? O que um currículo lamacento e pantanoso tem a nos ensinar para transmutar a educação quando a escola se assemelha a uma prisão, com grades, punições e castigos? É preciso aprender com as brincadeiras sujas das crianças, que não guardam relação pré-existente entre o barro e a mão que o molda. Caminhar, mas a partir de dentro e por dentro das poças de lama, em puro devir, pois estamos de passagem.
Vento Branco. 2015
Ebó
Não é fácil atravessar os corredores da escola quando você carrega um peso que não cabe na mochila. Foi numa manhã no horário do intervalo entre aulas, enquanto tomava um café frio na sala dos professores, que o professor de História, puxou conversa. Ele sempre teve um jeito de se aproximar, misturando informalidade com um tom professoral. Depois de comentar algo sobre o calor e fazer piadas sobre o próprio salário, lançou-me a proposta que ainda ressoa em meu corpo:
— Cara, já pensou em fazer um ebó? Tem um pai de santo que conheço, ótimo. Ele pode abrir seus caminhos, sabe? Nesses casos, só com ajuda espiritual mesmo.
Não procurei o pai de santo, não porque duvido da força espiritual, mas porque entendi que aquela sugestão não era sobre abrir caminhos, mas sobre me empurrar para fora deles. O que o professor de história me oferecia não era uma solução, mas um desvio, uma maneira de me tirar do campo em que eu estava lutando.
[Des]foco
O foco que ora me [des]foca atualmente é aquilo que antes permanecia opaco - um sujeito compacto, separado de si mesmo, subjugado pela história. Surge agora, em um distanciamento necessário, uma percepção aguçada da distância que ainda poderia existir, instigando a produção de uma vida mais plena. Aqui, torna-se evidente a emergência de um sujeito-em-obra, conforme Rolnik (2020), uma figura que se desenha como um duplo desfoque pela experiência. Este desfoque visa turvar não apenas a noção de unidade e identidade, mas também a concepção tradicional do Eu. Essa transformação não ocorre de maneira linear, mas sim através de um processo dinâmico e intenso, caótico e em grande medida, não parametrizável.