EDUCAÇÃO

Ensinar, vacilar: Freire, Beuys

e o inacabado corpo errante

Por André Araújo Lima 04/08/2024 (atualizado em 18/09/2025)

Há algo na sala de aula que me escapa e me atravessa. Um gesto, talvez. Ou uma ausência. Às vezes parece que estou ali, mas não estou. O que faz o professor ao ensinar? Explicamos, demonstramos, analisamos... Será que isso é ensinar? Ou seria ensinar o nome que damos a esse vacilo entre saber e não saber, entre o dizer e o silenciar, entre o olhar e o ser olhado?

Nos disseram que educar era conduzir. Mas será que não é mais um movimento de acompanhar? Acompanhar o surgimento de algo que não se pode prever? Acompanhar a hesitação do outro, e a nossa. Acompanhar o mundo quando ele não se deixa decifrar.

Talvez seja disso que falava Paulo Freire — não de um método, mas de um modo de estar com o mundo, um jeito de se comprometer com o que ainda não tem nome. Talvez seja isso que o artista alemão Joseph Beuys também intuía — que a arte não está nas coisas, mas nas relações, nas brechas, nas potências que tremem sob a superfície dos gestos cotidianos. Talvez os dois estivessem falando, cada um à sua maneira, de uma pedagogia da escuta sensível, que não teme o inacabado ou as aberrações.


Joseph Beuys, Quadro-negro I, 1972

Artigos recentes

Arte e guerrilhas feministas


Belas-Artes

morreu?



Anselm Kiefer:

um artista entre

o céu e a terra


A racionalidade

e o instinto na arte



Lâminas do diafragma:

mais é melhor?


É difícil saber onde começa a aula. Às vezes ela começa antes do professor entrar. Outras vezes, ela nunca começa. Somos apenas um corpo diante de outros corpos. Dizemos coisas. Eles escutam? Mas o que acontece ali? Não sabemos. E talvez essa seja a condição mais honesta da docência: não saber. Não por ignorância, mas por excesso de presença. Por estar ali inteiro, sem garantia de que algo será capturado. Será que é isso a “prática da liberdade” de Freire? Uma prática que não se apoia em certezas, mas em escutas? Em desvios? Em perguntas que não se apressam para virar resposta?

Beuys falava que “todo homem é um artista”. Mas que artista seria esse, senão alguém que aceita criar sem saber o que está criando? Alguém que lida com matéria informe — tempo, afeto, atenção — e arrisca um gesto? E se o professor também for isso: um escultor de instantes, de atmosferas, de intervalos, de dobras? Será que ensinar não seria uma arte também? Uma arte como performance precária, que só existe no momento em que acontece. E que, ao fim, se desfaz. A aula como escultura de ar, uma atmosfera. Como sombra. Como rastro. Freire falava da leitura do mundo. Beuys da arte como ampliação da vida. Ambos pareciam saber que educar e criar são movimentos de intensificação da experiência. Mas... será que estamos dispostos a isso? A ensinar sem saber o fim? A falar sem saber se seremos ouvidos? A escutar o que não compreendemos?

Entre Freire e Beuys, talvez não haja apenas teoria ou uma incomum aproximação. Talvez haja o desejo de que uma aula seja algo mais do que um momento didático, um acontecimento menor. Menor, não por insignificante. Menor, por não se impor. Por passar entre as coisas. Por deslocar sem dominar. Talvez o professor não precise ser um líder, um mestre, um exemplo. Quem sabe ele precise ser apenas alguém presente com intensidade. Aberto ao que vem. Disposto a se afetar. E se for isso que chamamos de professoralidade? Não uma identidade. Mas um modo de estar sendo. Sempre em trânsito. Sempre em dobra vacilante, errante...

A aula ainda não acabou...


Como citar este artigo:
LIMA, André Luiz de Araújo.
Ensinar, vacilar: Freire, Beuys e o inacabado corpo errante.
Disponível em: https://www.sonhosentrepedras.com.br/pt/ensinar-vacilar-freire-beuys-e-o-inacabado-corpo-errante .
Acesso em: .