EDUCAÇÃO

Arte como potência e as fissuras na máquina escolar

К Андре Араужо Лима 04/08/2024 (atualizado em 06/12/2025)

Esse texto parte de ideias e reflexões geradas a partir da minha pesquisa de mestrado intitulada " O fotográfico e a professoralidade: uma cartografia de aproximações e distanciamentos, disponível aqui.

O fragmento de uma frase que gosto muito de usar em algumas conversas e textos é atribuída a Jean Cocteau: "À História, prefiro a mitologia". Não a fantasia ingênua, mas esse lugar em que uma “mentira” diz mais da verdade do que qualquer verdade institucional. Talvez seja exatamente isso que a arte faz quando entra na escola: inventa mitologias para rachar as verdades prontas sobre ensinar, aprender e avaliar. Poderia começar falando de índices, metas, BNCC, resultados em avaliações externas. Mas a imagem que me interessa é outra: daquele estudante encostado na janela de uma escola pública, olhando lá fora, onde tudo parece vivo, improvisado, intenso, enquanto na escola, quase tudo é coreografado. A escola, em muitos momentos, vira um lugar de repetição polida, onde o imprevisto é suspeito e a experiência é vista como perda de tempo. Nós conhecemos bem esse estudante, ele sou eu, ele é você.

Entre esse dentro e fora, é justamente o campo da arte que pode funcionar como fissura, como rachadura. É aí que começo a pensar a arte como potência na educação. Falo da arte como potência como aquilo que intensifica os afetos, desloca formas de sentir, pensar e existir. Potência não é poder. O poder quer normatizar, controlar, medir, ceifar, alvejar, bipolarizar, matar. A potência insiste em produzir diferença.

Quando a arte entra na escola nesse registro, ela não responde apenas à pergunta “quando que é arte?”. Ela desloca questionamentos mais incômodos: que tipo de corpo a escola autoriza a existir em sala de aula? Que formas de sensibilidade são silenciadas em nome da “boa conduta”? O que a escola faz com os corpos cansados, doentes, excitados, distraídos, inquietos que ocupam suas carteiras? E que tipo de professor eu me torno quando aceito viver nesse ambiente saturado de imagens de controle, protocolos e avaliações?

Essa exposição não é simples. A tradição pedagógica ainda espera do professor um lugar de segurança: alguém que sabe, explica, organiza, controla, castiga. Uma espécie de gestor de certezas. A arte, quando levada a sério, racha essa imagem. Um professor de arte que se deixa afetar pelas obras, pelos materiais, pelos processos, já não pode ocupar com tranquilidade a posição de quem “domina o conteúdo”. A aula deixa de ser a execução de um roteiro e passa a ser acontecimento, e acontecimento, por definição, envolve risco. Estamos dispostos a isso?

É aqui que a ideia de pedagogia da experiência se torna central para mim. Em vez de imaginar o ensino apenas como transmissão, começo a pensar a aula como dispositivo de ex-posição: expor-se ao que não se sabe, ao que não se domina, ao que des-organiza. Não se trata de glorificar a improvisação irresponsável, (se é que ela existe), mas de admitir que há algo na experiência que não cabe em objetivos específicos, descritores ou em habilidades mensuráveis. A arte insiste em escapar.

Quando, em plena pandemia, propus aos meus estudantes a criação de um museu virtual, um falso museu, com acervo, curadoria, textos de sala, para depois vê-lo “pegar fogo” em uma notícia fabricada por eles mesmos, não estava preocupado em “ensinar” fake news com linguagem jovem. Estávamos experimentando uma situação limite: sentir luto por algo que nunca existiu, sofrer a perda de um patrimônio imaginário. A partir daí, a conversa sobre memória, preservação, abandono, destruição de acervos culturais reais surgiu com outra densidade. A arte não entrou como ilustração de um tema transversal; ela foi o próprio laboratório ao produzir no coletivo um novo corpo aberrante.

Essa aposta não funciona só para o ensino médio ou para situações excepcionais. No espaço da educação básica, a arte como potência se desdobra em pequenos gestos. Um deles é a atenção. Em vez de treinar apenas um olhar que reconhece “estilos”, “movimentos” e “técnicas”, interessa ativar um olhar em estado de espreita, quase distraído, capaz de perceber detalhes, ruídos, margens. Esse olhar pode nascer ao observar uma fotografia de família, um objeto quebrado, uma embalagem de mercado, um meme de internet como se fossem obras. O desconforto (“não entendi nada”, “que coisa feia”) deixa de ser um problema a ser eliminado e passa a fazer parte do processo.

Outro gesto é pensar a aula de arte como cartografia. Em vez de mapa pronto, a cartografia acompanha processos. Não me interessa apenas o trabalho final, o cartaz perfeito, a escultura bem-acabada, o desenho “bonito”. Interessa o caminho até ali: o que o estudante viu pela primeira vez? O que recusou? Onde travou? Que relações improvisou entre a própria vida e aquilo que estava em jogo na aula? Diários, rascunhos, anotações, conversas de corredor, tentativas fracassadas, tudo isso passa a ser considerado material de pesquisa. A aula vira um território em movimento.

Há também a dimensão do dissenso. A arte como potência não pacifica a sala de aula. Pelo contrário, muitas vezes acentua o conflito. Quando uma turma se depara com uma instalação contemporânea e reage com risos, deboche, irritação – “isso aí qualquer um faz”, “isso não é arte”, “odeio esse tipo de coisa”, a primeira tentação do professor é correr de volta para Monet, Van Gogh, o “belo” facilmente consumível. Mas é precisamente nesse quase cintilante atrito que algo pode acontecer. Por que incomoda tanto? Que imagens de “arte verdadeira” estão em jogo quando o estudante recusa a obra? Que lugar de conforto e reconhecimento está sendo ameaçado ali?

Nesse vai e vem entre experiência, cartografia, dissenso e professoralidades, uma quarta margem aparece com força: a invenção de si. Quando trago meus próprios trabalhos, minhas fotos, meus fracassos, minhas tentativas, não se trata de autopromoção. Trata-se de dizer: isso também é material pedagógico. Minha trajetória, minhas doenças, minha exaustão, meus deslocamentos de cidade, instituição e função também atravessam as aulas. Ao assumir isso, abro espaço para que os alunos façam o mesmo, não num registro confessional barato, mas como exercício de invenção de si.

É claro que tudo isso acontece dentro de uma máquina maior, que se chama sistema educacional, com suas exigências de produtividade, suas avaliações em larga escala, seus prazos, suas faltas, seus salários atrasados, suas punições violências mais e menos sutis. Seria ingênuo imaginar que a arte, sozinha, salvará a escola pública. Não vai e nem se trata disso. Arte não é remédio universal, nem garante aprendizado “efetivo” nos termos que certos discursos higienizados adoram repetir.

Mas é justamente nesse cenário que a arte se torna mais necessária. Enquanto a lógica dominante insiste em transformar a escola numa espécie de fábrica de evidências mensuráveis, a arte insiste em lembrar que há coisas que não cabem em planilhas. Que há experiências que só fazem sentido anos depois, ou nunca se tornam “úteis” no sentido imediato. Que há marcas que não aparecem em boletins, mas se inscrevem no modo como uma pessoa olha o mundo, nomeia as coisas, em como se vê.

Quando olho para a minha própria trajetória como professor de arte, vejo a arte atuando menos como conteúdo e mais como força de perturbação. Foi por meio de imagens, textos, performances, derivas fotográficas, que fui sendo forçado a me perguntar: que tipo de professor estou me tornando? Que tipo de escola estou ajudando a sustentar? Que mundos estou autorizando a aparecer em sala de aula, e quais estou ajudando a destruir? Talvez seja isso que eu queira dizer quando escrevo sobre arte como potência na educação: não se trata de acrescentar mais um adjetivo polido às políticas públicas, nem de transformar o professor de arte em um super-herói resiliente que resolve sozinho todos os problemas sociais. Trata-se de admitir que, num ambiente muitas vezes hostil à diferença, a arte ainda é uma das poucas forças capazes de instaurar zonas de passagem, brechas de vida, pequenos desassossegos.

Nada disso é uma promessa de futuro radiante. É um compromisso com o presente: fazer da aula um acontecimento, mesmo que pequeno, que nos obrigue a perguntar de novo e de novo o que estamos fazendo com o tempo e com os corpos que habitam a escola. Se a educação insiste em funcionar como máquina de morte, apagando singularidades, achatando experiências, produzindo sujeitos adaptados, talvez caiba à arte, quando levada a sério, o papel incômodo de travar essa engrenagem por alguns instantes. Se, nesses instantes, um estudante olha pela janela e, em vez de desejar apenas fugir dali, percebe que algo aconteceu dentro da sala, que algo se deslocou nele, no professor, na turma, talvez ali estejamos começando a tocar a tal potência.

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