EDUCAÇÃO
O que pode
um professor polivalente?
بواسطة أندريه أروجو ليما 04/08/2024 (atualizado em 21/09/2025)
“Rejeitamos a monocultura da linguagem, da forma, do método, do ensino, do pensamento, da sensibilidade, do corpo. Rejeitamos os códigos fixos, os signos unívocos, os signos sem carne.”
Vivemos um tempo de tensões entre o disciplinamento curricular e os fluxos errantes da criação. Entre os imperativos da técnica e o gesto indócil da arte, a formação docente em Artes caminha sobre um terreno instável — onde cada passo é também interrogação. Neste campo de forças, a polivalência emerge como figura controversa. Para uns, deficitária; para outros, estratégica; para nós, que buscamos uma docência em devir, ela é potência de insurgência — ética, política e estética. Este artigo defende que a polivalência, longe de representar uma ausência de profundidade e a desqualificação do professor de Artes, encarna uma abertura radical ao acontecimento, à multiplicidade e à experimentação no ensino da arte.
É preciso abandonar de vez a noção de que a atuação polivalente do professor de Artes representa uma precarização de saberes. Pelo contrário, ela se constitui como forma potente de resistência às estruturas tecnocráticas que desejam reduzir a arte a objeto de controle curricular. A leitura de Deleuze e Guattari (1995) nos convida a pensar a formação docente em rizoma: não há centro, nem hierarquia, nem linha reta. O professor polivalente é aquele que se conecta entre linguagens, entre corpos, entre mundos. É um professor-cartógrafo, que não transmite conteúdos, mas compõe mapas de afetos e experimentações.
Na esteira desse pensamento, Cunha e Lima (2020) argumentam:
“A formação de um docente com um perfil polivalente agregado a uma perspectiva interdisciplinar viabiliza [...] compreender mais intensamente a produção artística contemporânea.”
Esse “compreender” não é cognitivo apenas, mas sensível, existencial. A produção artística contemporânea dissolve as fronteiras entre dança, teatro, música, artes visuais — ela é corpo, é instalação, é ação partilhada. Como, então, formar um professor “especialista” numa arte que não respeita especializações?
A resposta não está na técnica, mas na escuta: escuta do que pulsa entre as linguagens, escuta do que ainda não tem nome. A polivalência, nesse sentido, é aquilo que permite ao professor existir no entre-lugar, nesse intervalo onde a arte pode acontecer.
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Há, no entanto, um conjunto de críticas à formação polivalente. Mileni Vanalli Roéfero (2018), por exemplo, denuncia o descompasso entre a exigência de atuação em múltiplas linguagens e a fragilidade das formações iniciais oferecidas. Segundo ela:
“A formação continuada no ensino da Arte acaba se tornando uma medida paliativa, diante das lacunas deixadas pela formação inicial.”
A crítica é legítima. Há de fato um hiato entre o que as políticas educacionais exigem dos professores e os recursos efetivamente disponíveis para sua formação nas universidades. Mas é importante notar o que essa crítica oculta: uma nostalgia pela hiperespecialização como garantia de legitimidade docente — como se o saber técnico-acadêmico e a formação verticalizada da pós-graduação fossem os únicos saberes possíveis.
Ora, se a arte contemporânea é atravessamento, rasura e deslocamento — por que exigir do professor a estabilidade de um especialista?
O risco da crítica de Roéfero é reforçar, ainda que involuntariamente, a lógica produtivista do conhecimento, onde o professor é medido pela proficiência técnica e não pela capacidade de inventar situações sensíveis de aprendizagem. Como bem argumenta Costa (2020), ao ouvir professores atuantes:
“A polivalência é vista por muitos docentes não como carência, mas como possibilidade criativa de articular experiências entre linguagens.”
É esse professor-criador, e não o tecnocrata de signos, que interessa à formação em arte. A formação continuada, então, não deve ser vista como “reparo”, mas como extensão de uma trajetória sempre inacabada, sempre à deriva.
Reduzir o ensino da arte à sua organização por linguagens é incorrer no equívoco da representação. É acreditar, de saída, que a arte comunica algo, que pode ser organizada como um sistema de signos interpretáveis. Contra isso, Jacques Derrida (1978) propõe outra leitura.
Em La vérité en peinture, Derrida escreve:
“A arte coloca em crise a própria possibilidade da representação. Ela diz aquilo que não pode ser dito, ela escreve com traços que escapam ao código.”
Nesse sentido, a arte não é uma linguagem — ela é precisamente o que excede a linguagem, aquilo que faz a língua tremer, gaguejar. O professor polivalente, então, não é alguém que “ensina várias linguagens”, mas alguém que se coloca em estado de vulnerabilidade diante do indizível, do que ainda não se forma.
É essa docência que opera como acontecimento. Como experiência ética. Como exercício de escuta ao que escapa — e é nesse ponto que a formação polivalente se aproxima de uma ontologia do ensino como criação de si e do mundo.
O que está em jogo, então, não é a disputa entre formação generalista e formação especializada. O que se disputa é o próprio sentido da formação: formar para quê? Formar para repetir técnicas ou para abrir mundos?
Como nos lembra Alvarenga (2018), ao analisar os movimentos da formação docente em arte nas últimas décadas:
“A construção do conhecimento artístico deve privilegiar a pluralidade de linguagens e práticas, não como soma de competências, mas como espaço de hibridismo e invenção.”
O professor polivalente não é um “faz-tudo”, mas um faz-entre: alguém que ocupa os interstícios, que cria pontes, que rasura os limites entre ensino e arte. Especialmente nos Institutos Federais — espaços por excelência da transversalidade e da formação técnica, humana e estética — a polivalência pode (e deve) ser reinventada como afirmação ética de uma outra forma de existir docente.
Não se trata de promover a polivalência de outrora como modelo técnico-pedagógico, mas de assumi-la com novo fôlego, como estética da existência. Uma maneira de dizer não ao tecnicismo, ao purismo disciplinar, ao currículo como grade. E dizer sim à docência como dança, como errância, como acontecimento.
Referências
ALVARENGA, V. M. Formação Docente em Arte: percurso e desafios. Ed. Real, 2018.
COSTA, L. F. Percepção docente sobre a polivalência e a interdisciplinaridade no ensino de arte, nos anos iniciais de ensino, ABEM, 2020.
CUNHA, D. S. S.; LIMA, S. R. A. de. A interligação da polivalência com a interdisciplinaridade e o ensino integrado das artes. Revista Música, v. 20, n. 1, 2020.
DERRIDA, J. Vérité en peinture. Paris: Flammarion, 1978.
DELEUZE, G.; GUATTARI, F. Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1995.
ROÉFERO, M. V. A formação continuada no ensino da Arte: uma medida paliativa?. Revista NUPEART, v. 20, 2018.